Por Diego Cevallos*
Diminui o investimento privado no manejo hídrico na América Latina, devido aos altos riscos políticos e financeiros, alertam especialistas.
MÉXICO.- Grupos ativistas afirmam que as multinacionais cravam cada vez mais suas presas nos serviços de água da América Latina, mas estudos da Organização das Nações Unidas e especialistas desmentem: essas empresas batem em retirada e, talvez, não regressem. Reclamações de governos e mobilizações sociais, como as registradas nos últimos anos na Argentina e Bolívia, a impossibilidade de cobrar por seus serviços em alguns países e o surgimento de normas que vetaram sua participação no Uruguai, acabaram desestimulando as multinacionais.
Agora, se afastam ou reduzem a envergadura de seus negócios, pois percebem elevados riscos políticos e financeiros, afirma o último informe da ONU sobre o Desenvolvimento dos Recursos Hídricos no Mundo, apresentado previamente ao IV Fórum Mundial da Água, que acontecerá na capital mexicana entre os dias 16 e 22 de março. Na década de 90, as multinacionais investiram cerca de US$ 25 bilhões em países em desenvolvimentos em setores relativos ao manejo da água, sobretudo na América Latina e Ásia, diz o documento. Porém, nos últimos anos os investimentos estão em queda.
“É difícil para companhias privadas de água fazer dinheiro quando as pessoas não podem pagar pelo recurso”, disse ao Terramérica Gordon Young, coordenador do Programa das Nações Unidas, que produziu o relatório. Embora este documento reconheça que a atuação do setor privado “não atendeu às expectativas dos países doadores e dos governos nas nações em desenvolvimento”, afirma que seria um erro descartar sua participação. Observadores consultados pelo Terramérica disseram que a retirada das empresas estrangeiras da América Latina, aonde chegaram animadas pelas reformas de privatização empreendidas pelos governos nos anos 80 e 90, poderia ser definitiva.
“Não creio que voltem. Estão em meio a uma reorganização corporativa e destinando seus recursos ao muito mais lucrativo setor de energia”, disse Sara Grusky, pesquisadora do não-governamental Food and Water Watch, com sede em Washington. Poderosas firmas, como as francesas Suez Lyonnaise de Eaux e Veolia Environnement (antiga Vivendi), a britânica Thames Water e a espanhola Águas de Barcelona, incursionaram no mercado da água no mundo em desenvolvimento.
Para Ralph Daley, diretor da Rede Internacional sobre Água, Meio Ambiente e Saúde, da Universidade da ONU, com sede no Canadá, “as companhias privadas estão deixando a América do Sul e outras regiões porque os riscos são muito altos”. Entretanto, diversos grupos de ativistas insistem em que é impossível de parar a onda de privatização da água e preparam uma bateria de ações paralelas ao Fórum Mundial da Água, o qual acusam de promover a participação de multinacionais no manejo hídrico.
A água é um bem público e um direito básico que não deve estar sujeito “à lógica do custo-benefício”, por isso deve ser mantida sob manejo do Estado e com participação social, disse ao Terramérica o diretor do não-governamental Tribunal Latino-Americano da Água, Javier Bogantes. Na região, onde há ingentes recursos hídricos, são os governos, municípios e as autoridades locais que majoritariamente manejam a água. Entretanto, não conseguem fazer com que chegue a todos.
Diversos estudos indicam que 77 milhões de habitantes da América Latina e do Caribe carecem de acesso adequado à água potável e que apenas um em cada seis conta com redes adequadas de saneamento. O Fórum do México é o quarto, depois dos de Marrocos (1997), Holanda (2000) e Japão (2003). Seu principal propósito é definir caminhos adequados para garantir a distribuição universal e sustentável do recurso, afirmam seus organizadores.
O encontro é organizado pelo governo do presidente Vicente Fox em acordo com o Conselho Mundial da Água, criado em meados dos anos 90 por figuras ligadas aos setores empresarial, acadêmico, científico e social. Miguel Solanes, assessor regional em Legislação de Águas e Serviços Públicos da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), disse ao Terramérica que é o momento de reconhecer que na região existe “certa prudência em relação às privatizações” dos serviços hídricos.
Essa atitude cautelosa não se observa apenas nos governos, mas também nas multinacionais, “que não desfrutaram muito a situação que produziram na Argentina ou na Bolívia”, segundo Solanes. No primeiro, a empresa Águas Argentinas, controlada pela francesa Suez, se envolveu em uma disputa com o governo, em 2002, e apresentou queixa perante um tribunal do Banco Mundial por não lhe permitir aumentar as tarifas do serviço de água potável. Embora essa companhia – acusada de duplicar, nos anos 90, suas tarifas sem melhorar nem ampliar a cobertura dos serviços de saneamento e água potável – já tenha retirado a queixa, mantém firme a decisão de abandonar a Argentina.
Na Bolívia, a Suez também enfrentou problemas em 2005. O governo boliviano rescindiu o contrato de prestação de serviços depois que a multinacional enfrentou protestos da população pobre, que reclamava das altas tarifas e do mau serviço. A Suez também apresentou queixa contra a Bolívia no tribunal do Banco Mundial, denominado Centro Internacional de Acerto de Diferenças Relativas a Investimentos.
Por outro lado, no Uruguai, foi aprovada por plebiscito, em 2004, uma reforma constitucional que define a água como bem de domínio público e estabelece que os serviços de abastecimento para o consumo humano devem ser prestados “exclusiva e diretamente por pessoas judiciais estatais”. Já no México, a presença do setor privado na área da água “está mais ou menos estática”, reconheceu Jesús Campos, subdiretor de Infra-Estrutura Hidráulica da estatal Comissão Nacional da Água.
Empresas privadas participam da distribuição do recurso em apenas três cidades do país e em uma dezena mais se envolveram no tratamento de esgoto, explicou o funcionário. Campos sugere não satanizar o setor privado. “Não devemos brigar com a idéia de nos associarmos com uma empresa privada quando for conveniente”, disse. Solanes, da Cepal, concorda: “Não existe nenhum problema em alguém (empresa privada) ganhar dinheiro, mesmo fornecendo um serviço público”. Entretanto, recomendou que os Estados ditem regulamentações adequadas para a participação privada e que o façam considerando o contexto econômico e social de seus países.
“Em si, a privatização é tão boa ou tão ruim quanto a economia na qual se insere, o cuidado com que é feita e a sociedade em que está”, acrescentou Solanes. O especialista recordou casos com do Chile, onde a privatização “teve mais ou menos êxito”. O Chile (onde empresas privadas operam em 100% do mercado de água potável) conseguiu uma cobertura de serviço de água potável e saneamento quase total. No setor operam com ampla liberdade tanto multinacionais quanto grupos econômicos locais.
* O autor é correspondente da IPS. Com colaborações de Stephen Leahy (Canadá) e María Cecília Espinosa (Chile).
março 13, 2006
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